quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O que é uma crônica?

Estou lendo crônicas e sobre crônicas. Li várias. A de Rubem Braga, que transcrevo agora me encantou bastante. E o que são crônicas? Vai aí a definição:

Crônicas são escritos poéticos acerca daquelas coisas para as quais ninguém dá a mínima importância. Dar bom dia ao vizinho, dar um beijo no seu amor, escolher fruta na feira, ler um poema bobinho de um poeta bobinho e achar lindo, tentar consertar alguma coisa com a ferramenta errada, deixar queimar o arroz e depois não conseguir se livrar daquele cheiro que fica na panela toda, perceber que a roupa está do lado do avesso depois de já estar trabalhando há mais de duas horas e até ter entrado na sala do chefe para dar aquela "puxadinha de saco básica". Enfim, é tudo e não é nada, mas é bem legal.

Vai aí a crônica do Rubem Braga. Espero que gostem amigos ocultos...

Recado ao Senhor 903


“Vizinho –
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois, como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 pra tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.


...Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou’. E o outro respondesse: ‘Entra, vizinho e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’.

E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.”

BRAGA, Rubem. Recado ao senhor 903. In: O verão e as mulheres. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p.19-20-21. Citado em BIGNOTTO, C.; JAFFE, N. Crônica na sala de aula: material de apoio ao professor. 2. ed., São Paulo: Itaú Cultural, 2004. p. 78-79.

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